O Malabarista: os melhores artigos de Arnaldo Jabor

Infância - III

Às vezes tenho vontade de telefonar para minha mãe. Mas, minha mãe já morreu. Mesmo assim, quis ligar, pois talvez houvesse um milagre e ela atendesse: “Alô? 284858? Mamãe?”

Na época desse número remoto do Méier, sua voz era jovem e feliz. Depois, foi enfraquecendo por outros números, até o tempo em que, já velhinha, atendia triste e doente o 478378: “E aí, meu filho... Tudo bem?”. Como seria bom o telefone me salvar e alguém me chamar de “meu filho”. Seria bom ser teletransportado ao passado e fugir das dores do país, do mundo e de mim mesmo. Confesso que, em alguns momentos de desespero, eu já liguei escondido para números antigos de casas em que morei. Ouvia a voz anônima e falava: “Desculpe, é engano...”, com a sensação de, por instantes, ter visitado minha velha casa.

Minha mãe era linda. Parecia a Greta Garbo. Um dia, meu avô bateu nuns vagabundos que mexeram com ela, ainda mocinha, na base do “Tem garbo, mas não tem greta” e outras sacanagens de época... Meu avô, malandro e macho, pegou a bengala e cobriu-os de porrada.

A vida de minha mãe foi a tentativa de uma alegria. Sorria muito, trêmula, insegura e, nela, eu vi a história de tantas mulheres de seu tempo buscando uma felicidade sufocada pelas leis do casamento, pela loucura repressiva dos maridos. Meu pai era um árabe alto, de bigode, pilotando aviões de guerra; era um homem bom e amava-a, mas nunca conseguiu sair do espírito autoritário da época e, inconscientemente, se enrolou numa infelicidade que oprimia os dois.

Na classe média carioca dos anos 50, cercados de preconceitos, medos e ciúmes nas casas sombrias, os casais estavam programados para tristezas indecifráveis. Eram cenários estreitos para o amor: a casa do subúrbio, o apartamento micha de Copacabana, onde vi minha mãe enlouquecer pouco a pouco, tentando manter um sonho de família, tentando manter a cortina de veludo, a poltrona coberta de plástico para não gastar, os quadros de rosas e marinhas e a eterna desculpa para os raros visitantes: “Não reparem que a casa não está pronta ainda...” (isso, com 50 anos de casada). A casa nunca ficou pronta, como ela, Greta Garbo do subúrbio, sonhou: a casa feliz, com bolos decorativos nas festas, seu orgulho, a única coisa que ela sabia fazer: bolos em forma de avião, para homenagear meu pai piloto, em forma de livro, para me fazer estudar ou em forma de piano para minha irmã tocar, naqueles aniversários em que os sofás de cetim marrom e branco eram descobertos com vaidade.

Na juventude, minha mãe era infeliz e não sabia, pois todas suas forças eram convocadas para esquecer isso. Cantava “foxes”, para desgosto de meu pai e ria com medo — se bem que ninguém era muito feliz naquele tempo. Não havia essa infelicidade esquizofrênica de hoje, mas era uma infelicidade tristinha, com lâmpada fraca, uma infelicidade de novela de rádio, de lágrimas furtivas, de incompreensões, de conceitos pobres para a liberdade. Eu via as famílias; sempre havia uma ponta de silencio, olhos sem luz, depois dos casamentos esperançosos com buquês arrojados para o futuro que ia morrendo aos poucos. Não era a tristeza da pobreza; dava para viver, com o Ford 48 sendo consertado permanentemente por meu pai sujo de graxa aos domingos com o rádio narrando o futebol, dava para viver com uma empregadinha mal paga, dava, mas a tristeza era quase uma “virtude” que as famílias cultivavam, sem horizontes.

Toda minha vida consistiu em fugir daquela depressão e em tentar salvá-los. Eu queria dizer: “saiam dessa, há outras vidas, outras coisas!” — logo eu, que achava que ia descobrir mundos luminosos feitos de revoluções e de prazeres, eu, que achava que viveria na vertigem do sexo que se libertava, na bossa nova, na arte, ilusões que foram logo apagadas pelo golpe de 64 que, com apoio do meu pai, restaurou a luz mortiça das famílias, das esposas conformadas em seus cativeiros.

Minha geração se achava o “sal da terra”, tocada pela luz da modernidade. Mal sabíamos do outro desamparo que viria; não a melancolia do rádio aceso no escuro, não a televisão Tupi ainda trêmula em preto e branco, não as esquinas cheias de mistério, não o apito do guarda-noturno, mas a nossa impotência diante do excesso de acontecimentos.

Hoje, vivemos essa liberdade desagregadora, vivemos o medo das ruas, das balas perdidas, que não havia quando mamãe ia visitar a médium de “linha branca” que lhe prometia felicidade com voz grossa de “caboclo”. Antes, minha mãe e meu pai tinham a ilusão de uma “normalidade”. Hoje, todos nos sentimos sem pai nem mãe, perdidos no espaço virtual, dos e-mails, dos contatos breves, da vida rasa sem calma. Que vai nos acontecer nesse mundo, nesse país de crimes e de riscos — Brasil, onde nada se soluciona, onde tudo é impasse e encrenca? Será que nunca mais teremos sossego? Sinto imensa saudade da linearidade, do princípio, do meio e do fim das vidas, e tenho medo de ter morrido e de não perceber. Por isso, me dá essa vontade profunda de pegar o telefone e discar, não num celular volúvel, mas num aparelho preto, velho, de ebonite, discar, ouvir a voz de minha mãe e reaparecer na salinha de móveis “chippendale” e vê-la sempre querendo ser feliz, mas com vergonha das visitas: “Não reparem que a casa não está pronta...”

Na verdade, tenho vontade de discar, mas é para saber quem sou eu. E quando disserem: “Quem fala?” — pensarei: “É o que me pergunto sempre...” Mas, sei que vou desligar, dizendo: “Desculpe, é engano...”

 

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