O Malabarista: os melhores artigos de Arnaldo Jabor

Amor, sexo e um outro sentimento

Já percorri caminhos de amor e sexo, mas tudo fica difuso quando tento lembrar dos momentos de êxtase. O prazer se esvai na memória. Já amei mulheres só depois que as perdi. Já odiei ser amado, já amei por narcisismo. Quantos “amam” para humilhar o outro com seu “imenso” amor? Quantos “amam” por egoísmo?

Nos anos 70, amor e sexo passaram por uma revolução confusa. As paixões eram súbitas e as separações sem aviso. Havia um sexo experimental no ar que almejava o “desregramento de todos os sentidos”. Eram caretas a possessividade, a fidelidade. No entanto, as emoções fundamentais estavam ali, disfarçadas, mas presentes: posse, ciúme, medo.

O que faz o amor tão inquietante é o medo da rejeição, da perda do objeto ou, mais simplesmente, da dor-de-corno. Eu já sofri monumentais dores-de-corno e elas me ensinaram muito. Acho mesmo que o homem só vira homem quando recebe chifres didáticos. Só aí o macho onipotente conhece o desespero da condição humana. A dor-de-corno é física, é uma experiência de morte. A mulher te diz: “Vou embora com fulano porque não te amo mais!” Aí, você morre. E a pessoa perdida passa a ter um halo divino. Eu já escalei muro com cacos de vidro para ver a janela acesa de uma amada, eu já rolei no meio-fio por causa de mulher. Se o amor te preenche de sentido, a dor-de-corno te feminiza, te exclui do universo, você fica ridículo, pois o corno não inspira compaixão, apenas um deboche dissimulado. Por isso, vou narrar um caso que nunca contei para ninguém.

Uma vez, há mais de trinta anos, fui largado por uma mulher, assim... De repente. Ela entrou em casa de madrugada e declarou: “Vou embora com fulano amanhã de manhã.” E desmaiou num sono profundo e desesperado. E eu fiquei sentado, ouvindo o pêndulo do relógio até o dia clarear na janela, como uma ferida se abrindo. Nada pior que sofrer de manhã. É mais terrível a solidão com o sol na cara, na rua, as pessoas trabalhando, rindo, e você como um zumbi na cidade irreconhecível. Copacabana virou um pesadelo nos dias seguintes. Eu andava como o chamado “farrapo humano” pelo Posto Seis. Tinha vontade de cortar a cabeça para parar de pensar nela. Tudo era ela.

Uma noite (de noite, a solidão dói menos...), entrei bêbado num botequim ali do Posto Seis, perto da Galeria Alaska. O corno bêbado tem dois estados básicos: ou está caído no meio-fio chorando lágrimas de esguicho ou tem desajeitados arrancos de ousadia, com esperança de parar de sofrer. Entrei no boteco a fim de aprontar alguma coisa, um ato, um fato que me fizesse entrar de volta na vida normal. “Me dá um limãozinho aí”, ordenei com pastosa determinação. O paraíba botou a cachaça. Olhei para o lado, feroz, ostentando macheza, e vi duas prostitutas perto do balcão, tomando média com bolo. Uma delas, branquinha e fraca; e a outra, preta, preta mesmo, zulu, gorda e colorida pela luz de néon que brilhava em seus braços negros. Chamei a preta, ostentando confiança: “Vamos até lá em casa etc. e tal?” A preta me olhou, pegou a bolsa e saiu rebolando na frente. Meu desejo era a conspurcação, uma forma invertida de purificar-me, prática que muita gente conhece. Atravessamos a rua molhada até o prédio onde eu morava. Ela, calma; eu, trôpego, tentando a linha reta.

Ela chamava-se Áurea — nunca esqueci esse nome luminoso. Áurea subiu no elevador me examinando, a mim, cambaleando e babujando as habituais bobagens de freguês. Ela, quieta, me olhando. Entramos em casa e eu desabei numa poltrona, enquanto Áurea olhava a casa em silêncio. Olhou em volta a bagunça dramática. Viu roupas de mulher jogadas numa poltrona (eu dormira agarrado numa saia) e perguntou onde estava minha esposa. Pronto; foi a senha para uma longa queixa de dores, uma confissão de meus infortúnios. Não sei por que, talvez por me ver diante de uma experiente mulher “da vida”, desfiei todos os meus segredos, minhas dores mais vergonhosas, minhas lágrimas mais íntimas, para Áurea, que me olhava com um sorriso receptivo, seios francos, quadris e coxas negras, me ouvindo, me ouvindo. Estava ali uma profissional pobre, vida dura, sofrida, atenta àquelas queixas burguesas que eu derramava. Seu rosto não era nem de desprezo nem de falsa simpatia. Depois de ouvir meu papo longo (corno adora reclamar), ela começou a me dizer frases simples, óbvias, mas com uma doçura e compaixão que eu nunca vira antes: “Mulher não presta, não liga, não, o tempo resolve tudo, você é moço...” Depois, Áurea se levantou e disse que eu precisava me organizar, não ficar fraco. Lembro-me de que ela disse: “O corpo cai, mas a alma tem de ficar de pé...”, algo assim. Olhou em volta e comentou: “Este teu apê está uma zona, hein?” Em seguida, foi até a cozinha, onde pegou os pratos sujos, empilhados, pedaços de pizza no chão, panelas gordurosas, e, com a destreza linda das mulheres pobres, botou tudo brilhando em 15 minutos. Arrumou tudo nas prateleiras, foi até minha cama de corneado e ajeitou lençóis e colchas, dobrou minhas roupas, ajeitou travesseiros.

Eu olhava tudo, tonto, e caí na cama. Áurea ajeitou mais coisas, se deitou a meu lado e me botou entre seus seios de mucama, ama de leite, passando a mão em meus cabelos e repetindo que “mulher não vale uma lágrima”. E foi assim que ela me fez amor, a mim, passivo e soluçante. Depois, Áurea se levantou e foi embora. Não aceitou o dinheiro que eu tentei lhe dar. E sumiu, escura, na noite negra.

Até hoje, quando me sinto vazio, lembro-me daquela noite em Copacabana e de Áurea, a negra babá de minha dor-de-corno.

 

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